Maria do Rosário: ‘Silêncio não garante proteção’

  • 28 de agosto de 2017

Escrito por Maria do Rosário, deputada federal (PT-RS), Yasmim Yogo e Camila Gomes, advogadas do escritório Cezar Britto & Advogados Associados.

Em 9 dezembro de 2014 um parlamentar subiu à tribuna da Câmara e proferiu palavras indignantes que foram amplamente reproduzidas na imprensa nacional e internacional. Para agredir, mais uma vez, uma colega que acabara de fazer um discurso em defesa dos direitos humanos e da Comissão Nacional da Verdade, o deputado afirmou o crime de estupro enquanto conduta eletiva, cuja decisão sobre sua prática se ancoraria no que chamou de “merecimento” da mulher. Não satisfeito, reafirmou as ofensas em entrevista concedida ao Jornal Zero Hora, montou um vídeo que reproduzia sua fala e deu ampla divulgação a esses fatos em suas páginas oficiais nas redes sociais.

Por meio de seu discurso, amplificado pela enorme repercussão dada aos fatos, o deputado, hoje condenado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) na esfera cível e réu no Supremo Tribunal Federal (STF) por injúria e incitação ao crime de estupro, promoveu o ódio contra as mulheres. O maior exemplo disso são as reações dos seus seguidores nas redes sociais que mediante palavras impronunciáveis geram uma avalanche de agressões que, além não terem cessado até o presente momento, se multiplicam e atingiram até a ministra Nancy Andrighi, relatora do caso no STJ.

Ao afirmar que uma determinada mulher não merece ser estuprada o parlamentar alçou aquilo que é considerado um crime hediondo à categoria de prêmio. Ao dizer que o homem é quem decide se a estupra ou não, colocou todas as mulheres em condição de subjugação e inferioridade, retirando de cada uma o poder sobre seus corpos. Sua afirmação ofensiva e repugnante em si foi expressa no seio de uma sociedade na qual a cada dois segundos uma mulher sofre violência (verbal e/ou física); em que 45 mil mulheres são vítimas de estupro a cada ano, num contexto em que a dignidade e a vida das mulheres são reduzidas a pó dia após dia.

Referimo-nos aqui a palavras que foram espalhadas nos quatro cantos de um país que precisou ser denunciado na esfera internacional por sua incapacidade de proteger suas mulheres e meninas da violência. É bom lembrar que a Lei Maria da Penha, marco no enfrentamento à violência contra a mulher internacionalmente reconhecido, somente foi editada depois da longa trajetória de uma mulher que, por não ter encontrado respostas dentro do sistema de justiça brasileiro, recorreu à Comissão Interamericana de Direitos Humanos para ver reconhecido e protegido o seu direito a integridade física e psicológica.

Diante deste cenário, a decisão corajosa e potente do STJ assume contorno ainda mais relevante. Ao dizer que “o ‘não merece ser estuprada’ constitui uma expressão vil que menospreza de modo atroz a dignidade de qualquer mulher”, o voto da ministra relatora reconfigurou essa história. Afirmou que as atitudes de Bolsonaro não foram apenas erradas, mas também ilícitas; que ele tem o dever de reparar os danos causados; que condutas como as suas são passíveis de responsabilização e não estão protegidas pela imunidade parlamentar.

É preciso destacar que depois do genocídio dos judeus durante o nazismo reconheceu-se o que a democracia exige, não apenas o respeito à vontade da maioria, mas a observância e a proteção aos direitos humanos. Assim, os votos que levaram Jair Bolsonaro ao Parlamento não o legitimam, nem a autorizam a infringir os direitos de ninguém. Este, que violou os direitos de uma mulher e incitou a violação aos direitos de outras 100 milhões de brasileiras, atacou a democracia como um todo.

Sabemos que um processo judicial não é o início nem o fim de uma história. Ainda que a decisão proferida se trate de precedente importante, de uma afirmação política da dignidade humana que se espera obter do Poder Judiciário todos os dias, não encerra a luta das mulheres por dignidade, por direitos e contra a violência. Ao contrário, somente revela a existência dessa realidade e a necessidade de avançarmos, mais e mais, no combate a esse tipo de violência.

A luta das mulheres se faz diariamente em todos os espaços. E prossegue, com a certeza de que há, cada vez menos, lugar para a impunidade. Essa história ainda terá muitos capítulos. E muitas afirmações, como a proferida pelo STJ, ainda precisarão ser feitas para assegurar às mulheres uma vida sem violência.

Que alguém se sinta à vontade para desferir e divulgar, como se positivo fosse, ofensas dessa gravidade a uma colega de Parlamento, infelizmente, nos diz muito sobre o grau de naturalização da violência contra a mulher em nossa sociedade. E que seja necessário recorrer ao Judiciário para obter o reconhecimento de que nenhuma mulher merece ser estuprada nos dá a proporção do tamanho do problema que enfrentamos no Brasil.

O trajeto ainda é longo, mas isso não nos impedirá de seguir resistindo aos efeitos silenciadores da violência. Afinal, o silêncio não é garantia de proteção: precisamos continuar falando sobre a violência contra as mulheres.

Artigo originalmente publicado em: http://midianinja.org