A desconstrução do movimento sindical e a sua necessária reinvenção – CONJUR

  • 11 de abril de 2018
reforma da previdência

Por Rodrigo Camargo Barbosa e Caroline Sena

A história da humanidade está intimamente ligada ao conceito de trabalho e seu sentido no âmago das relações sociais. Desde a concepção da primazia do indivíduo, trabalhada pelo filósofo Kant a partir de conceitos liberais de Estado, até o que consideramos a aglutinação dos indivíduos para a autonomia da vontade coletiva, o trabalho tem sido compreendido como “expressão de vida e degradação, criação e infelicidade, atividade vital e escravidão, felicidade social e servidão”[1].

O cenário laboral que se desenhou no Brasil, a partir do início da década de 1930, com a República Velha em descenso, juntamente com a oligarquia cafeeira, quando praticamente não se possuíam leis e garantias ao trabalhador, permitiu detectar o sentido do trabalho como mera busca da produtividade e alicerce da tardia revolução industrial. Era o ápice da coisificação, personificada por meio de jornadas exaustivas e demais intempéries do ambiente laboral. Com a crise internacional do capitalismo, em 1929, e a pressão dos empresários locais pela intervenção do Estado na economia nacional, surgia o desenvolvimento industrial e a malconcebida ideia de modernização do país.

Nesse sentido, esclareceu a professora Noemia Porto:

“Tempo e espaço unem os trabalhadores. Todavia, o modo como o trabalho é executado revela um profundo ‘estar só’, ainda que juntos, trazendo à tona, com isso, problemas próprios ao trabalho contemporâneo, do pós-fordismo[2]“.

No final do século XX, no Brasil e na América Latina, surge uma espécie de “Terceira Revolução Industrial”, e com ela a mudança nas técnicas de produção, que objetivava implementar uma revolução produtiva, organizativa e ideológica no mundo do trabalho, alinhada com o capital financeiro internacional.

Com ela, exsurge de forma lógica o sentido do trabalho levantado pelos novos métodos de gerenciamento de produção. Junto, uma mudança ideológica propagandeada de muitas formas aos trabalhadores, dentre elas a competitividade desenfreada. Não por outra razão que neste momento o Estado regulava a violência, sem interferir na atividade econômica. Método relacionado à política neoliberal.

Aqui, nessa época, meados da década de 1990, “já se falava em reforma trabalhista que visava acabar com os direitos dos trabalhadores, conquistados em um século de lutas e consagrados em lei na década de 30”[3]. A meta era a famosa modernização das leis do trabalho, forma essa que permitiria flexibilizar as leis trabalhistas vigentes. Por óbvio, já se pensava a prevalência do negociado sobre o legislado, deixando livre a negociação entre patrões e trabalhadores.

Pode ser nessa quadra do tempo, a partir do pós-Constituição de 1988, que o movimento sindical no Brasil tenha arrefecido e perdido forças para resistir à implementação desse modelo de produção, que busca enxugamento das etapas de mão de obra e seu valor agregado, por meio da multifuncionalidade do trabalhador, ou seja, acumulando funções em poucos trabalhadores e demitindo o “excedente” do ponto de vista do empresariado.

E a premissa de que um único trabalhador produza o que antes 10 faziam ganha força, sentenciando o derradeiro fim material do método de produção fordista e taylorista. Agora, cada trabalhador seria um multitrabalhador, desempenhando inúmeras funções que antes eram divididas em um grupo. Assim, o sentido do trabalho volta avidamente a se tornar degradante, coisificador e não mais emancipador.

Paroxismo da situação estrutural pode ser visto no curta de animação argentino chamado El Empleo (2008), que de maneira tragicômica impõe uma ação reflexiva sobre as relações de trabalho e seu destino, na égide do capitalismo. Se por um lado consideramos Charles Chaplin, em Tempos Modernos, como a alienação do trabalhador, na circunstância de um capitalismo industrial e da mais-valia, aquele curta mostra a precarização do trabalho a partir de índices de desemprego elevados.

Além disso, estampa uma inversão de valores que se pode traduzir como trabalhadores “empreendedores de si mesmos”, já que impassíveis diante das aludidas “modernização”, “flexibilização” e outros eufemismos, que brutalizaram o cotidiano laboral.

Tendo o movimento sindical, então, estacionado em sua vivência cotidiana de resistência, desnutrindo de forças a luta coletiva, vê-se também que a própria Consolidação das Leis do Trabalho, expressão mais acabada do freio ao avanço sindical, burocratizava os direitos coletivos, ou mesmo restringia seu exercício, desde a década de 1930. Segundo a professora Nair Bicalho:

“A transformação da entidade sindical em instituição de direito público, o sindicato único pela base territorial, o enquadramento sindical, o monopólio da representação profissional, o controle das eleições e da contabilidade sindical, a estrutura sindical verticalizada, a imposição da Justiça do Trabalho como mediadora dos conflitos, a contribuição sindical obrigatória, além da intervenção do Ministério do Trabalho em assuntos sindicais, foram heranças amargas da CLT que cercearam, burocratizaram e cooptaram inúmeros dirigentes sindicais, além de terem causado pesados danos aos representantes mais combativos e comprometidos com a defesa dos interesses efetivos da classe trabalhadora brasileira[4]”.

Por certo que o desemprego é um fator responsável pela modificação nas relações de trabalho, seu sentido imanente, inclusive nos tempos atuais, afeta o sindicalismo de modo indireto. Alusão, por ora, à pretensa reforma trabalhista promovida pelo presidente Michel Temer, que não se intimidou em inserir em seu bojo uma outra reforma sem qualquer receio de asfixiar ainda mais o sindicalismo brasileiro.

Nas palavras do professor da Unicamp Márcio Pochmann:

“E é justamente nesta questão que se assenta o eixo estruturador da proposição atual de reforma trabalhista. Diante do mais grave desemprego da história do país, produzido pela política contra produção e renda do governo Temer e que enfraquece o sindicalismo”[5].

Estamos aqui tratando, concomitantemente, da bestificação absoluta do trabalho e seu próprio sentido, implementada por uma política que vem tentando ser posta no Brasil há pelo menos duas décadas, bem como da involução no plano fático do sindicalismo, que não reagiu oportunamente para não inibir a luta contra a nova organização sistemática do trabalho, quando a sua fase ainda poderia ser ascendente.

Certo é que, durante o período pós-Constituição de 1988, em plena égide da consolidação de uma social-democracia, a turbulência institucional se agigantou e, pela primeira vez nesse período, causou uma ruptura drástica das arestas do programa democrático de estabelecer uma justiça social dentro de um sistema capitalista.

A permanente busca da concretização de um Estado Democrático de Direito, por meio da manifestação das entidades da sociedade civil, incluindo o sistema confederativo sindical, da regulação econômica e na expectativa de uma distribuição de renda mais igualitária, se deparou com a cisão do processo democrático, em detrimento da classe trabalhadora.

Nessa toada, percebe-se, por um olhar sistêmico, que a complexidade da situação econômica, a partir do rompimento democrático constitucional iniciado em 2016, encabeçada pelas reformas estruturais do governo, agravou o desvirtuamento das funções sindicais no país. Não mais se espera, tampouco se pode esperar algo unicamente corporativo das entidades sindicais, que, para sobreviver, deverão envidar esforços para além do amparo à categoria profissional que representam.

Isso porque, no transcorrer da evolução histórica sindical, verificou-se uma drástica modificação de suas atividades, que variaram da esperança de uma revolução operária ao peleguismo localizado em que muitos hoje se encontram. Paul Singer, em obra datada de 1999, já refletia sobre a reorganização essencial do sistema sindical e as atividades-fim dos sindicatos, no seguinte sentido:

“Os sindicatos devem organizar todos os trabalhadores, inclusive os desempregados. Não há mais espaço para o sindicalismo da forma como se apresenta, pois os sindicalizados são hoje uma minoria de trabalhadores privilegiados. (…) os sindicatos devem se empenhar a fundo na geração de renda, deixando de existir apenas para os trabalhadores que tem emprego”[6].

De fato, esse tipo de intervenção sindical é deveras considerado como o denominado neossindicalismo por alguns autores. De qualquer sorte, tem-se que enxergar nos dias atuais que a linha produtiva laboral, com os ditos avanços tecnológicos e a instituição da multifuncionalidade do trabalhador, redimensionou o sentido do trabalho para um campo indócil, na medida em que, concomitantemente, promoveu a junção de produtividade e competitividade. Dois institutos aqui mencionados como pertencentes, um a um, aos reflexos das revoluções industriais no país e no mundo.

O sistema sindical e sua atuação tornou-se uma grande incógnita, visto que no decorrer das últimas décadas as demandas trabalhistas tiveram sensível desestruturação e flexibilização exacerbada. Muito além das conquistas históricas de jornada de trabalho, horas extras, insalubridade, dentre outras, a luta atual mais eminente perpassa a simples manutenção do emprego, em detrimento de direitos e garantias já conquistados.

Possivelmente, caso permaneça a não compulsoriedade da contribuição sindical estabelecida pela reforma trabalhista/sindical, surgirá uma rearticulação de forças sindicais, no sentido de abarcar as demandas de toda a sociedade, dentre elas o emprego formal e a estabilidade econômica, fazendo concretizar o neossindicalismo.

Pode ser, dessa forma, que caia o último apêndice de ligação entre o Estado e a estrutura confederativa, que é a contribuição sindical, estabelecendo uma liberdade de atuação obreira e impondo uma manobra política reorganizativa de atuação voltada aos trabalhadores e sociedade civil, aglutinados como num corpo só.

Qualquer que seja o desfecho de um programa intitulado Uma ponte para o futuro, fato é que, tanto para o sindicalismo quanto para as relações de trabalho, essa ponte significou um encontro com o passado, a exigir, mais do que nunca, a junção de forças e de uma nova mentalidade que lhes permitam existir sem esvaziar o núcleo essencial de direitos fundamentais que são.


[1] ANTUNES, Ricardo. O Caracol e sua Concha: ensaio sobre a nova morfologia do trabalho. Pág. 137.
[2] PORTO, Noêmia. Sofrimento banalizado em “Carne e Osso”: o direito a qual proteção fundamental?. Rev. TST, Brasília, vol. 78, no 3, jul/set 2012, pág. 227.
[3] GIANNOTTI, Vito. História das lutas dos trabalhadores no Brasil. Rio de Janeiro: Mauad X, 2007. Pág. 294.
[4] DE SOUSA, Nair Heloísa Bicalho. Novos sujeitos sociais: a classe trabalhadora na cena histórica contemporânea.
[5] POCHMANN, Márcio. Ante desemprego, reforma da CLT defendida por Temer só ataca salários e direitos. Artigo publicado http://justificando.cartacapital.com.br/2017/01/04/pochmann-ante-desemprego-reforma-da-clt-defendida-por-temer-so-ataca-salarios-e-direitos/. Acesso: 6/3/2018.
[6] SINGER, Paul. A crise das relações de trabalho. In: CARVALHO NETO, A. M. NABUCO, M. R (orgs.) Relações de trabalho contemporâneas. IRT, PUC Minas, 1999, p. 247.


Rodrigo Camargo Barbosa é advogado coordenador do Núcleo de Administrativo-Cível do Cezar Britto Advogados Associados, graduado pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e pós-graduando em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb).

Caroline Sena é advogada especialista em registro sindical no Ministério do Trabalho, pós-graduanda em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília (Iesb) e secretária-adjunta da Comissão de Direito Sindical e Associativo da OAB-DF.


Artigo originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/

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