Recentemente, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei nº 3831, de 02 de dezembro de 2015, o qual tinha por objetivo estabelecer “normas gerais para a negociação coletiva na administração pública direta, nas autarquias e nas fundações públicas dos poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios”.
O PL traz uma grande conquista: a de que a Administração Pública tem o dever de implementar o processo de negociação coletiva, sob pena de se caracterizar infração disciplinar (art. 14 do PL). A importância dessa previsão se mostra pelo fato de que atualmente, o Poder Público simplesmente não demonstra interesse em sentar à mesa de negociação, em clara desídia ao processo de democratização das relações de trabalho no âmbito do serviço público.
Não por outra razão que a aprovação do PL no Congresso foi motivo de grande comemoração pelos servidores públicos, sendo amplamente divulgado e discutido em fóruns das entidades representativas. Aguardava-se então a sansão da Presidência da República.
Ocorre que, para a surpresa (ou não tanto) de muitos, o Presidente Michel Temer vetou o projeto em sua íntegra sob o sucinto argumento de que “a proposição legislativa incorre em inconstitucionalidade formal, por invadir competência legislativa de estados, Distrito Federal e municípios, não cabendo à União editar pretensa norma geral sobre negociação coletiva, aplicável aos demais entes federativos, em violação aos artigos 25 e 30 da Constituição, bem como por apresentar vício de iniciativa, ao versar sobre regime jurídico de servidor público, matéria de iniciativa privativa do Presidente da República, a teor do artigo 61, § 1º, II, ”c” da Constituição”.
Perceptível, assim, que os motivos restringem-se a aspectos formais, nada sendo discutido acerca do mérito da possibilidade ou não da negociação coletiva para servidores públicos. E, sobre os citados vícios que serviram de base para o veto, é preciso destacar que são constitucionalmente insustentáveis.
Primeiro, porque não há invasão de competência dos entes federativos quando a União estabelece normas gerais. No próprio texto do PL há a expressa previsão de que caberiam aos entes federativos estabelecer normas suplementares para atender as particularidades locais. Não bastasse, é bem evidente que o projeto em questão se preocupou em trazer diretrizes principiológicas e os limites constitucionais para fomentar a implementação do instituto da negociação coletiva no âmbito do serviço público, de modo que também não há como prevalecer o argumento de que houve lesa à autonomia dos Estados, Municípios e do DF.
Por último, também não merece crédito o argumento de que o projeto estaria viciado por usurpação da competência privativa do Presidente da República, uma vez que a regulamentação da negociação coletiva é um instituto macro que não se encontra limitado ao regime jurídico dos servidores. Há de se ressaltar, inclusive, que o projeto se legitima a partir do Decreto nº 7944/2013, que trata da Convenção nº 151 da OIT, ratificada pelo Brasil.
Assim, tendo-se sucintamente demonstrado que não são sustentáveis os argumentos presidenciais para o veto ao PL nº 3831/2015, faz-se interessante discorrer brevemente sobre a plena compatibilidade da negociação coletiva com o ordenamento jurídico brasileiro.
Segundo o ministro do TST, Maurício Godinho Delgado, é necessário compreender que a negociação se revela elemento inafastável da razão e existir do sindicato, sem a qual não se contemplaria sua função constitucional de autonomia e demais deveres e prerrogativas do art. 8º da Constituição(1).
E, nesse espírito democrático, foi que o Brasil ratificou, como já citado, a Convenção nº 151 da OIT que, notadamente no art. 7º, incentiva, de maneira expressa, a adaptação da legislação nacional de forma a permitir a negociação no serviço público. A própria convenção apenas restringe a negociação para agentes de nível elevado, com informações confidenciais e monopólio da força.
Tem-se também ratificada a Convenção nº 154 da OIT, sobre o incentivo à negociação coletiva, promulgada pelo Decreto nº 1.256/94. Seu art. 1º, “3”, admite a negociação coletiva no serviço público, prevendo, “no que se refere à administração pública, a legislação ou a prática nacionais poderão fixar modalidades particulares de aplicação desta Convenção”. Assim é que a adaptação da legislação brasileira se torna necessária ao cumprimento da Convenção ratificada.
Sobre essa adaptação, pontuam-se algumas das questões que são suscitadas como entraves para a realização da negociação com servidores públicos, quais sejam: os limites orçamentários e o princípio da reserva legal.
Quanto à restrição orçamentária, primeiramente, recorda-se que nem todas as questões laborais implicam em reflexos econômicos, havendo possibilidade de se negociar, sem prévia necessidade de orçamento, determinadas condições de trabalho relativas à saúde, segurança, avanço tecnológico, etc.(2).
Também é possível observar a negociação como forma de consulta prévia sobre os temas de interesse da categoria sindicalizada, algo que, de forma limitada, já é possível de ocorrer(3). Ampliando-se o escopo desta modalidade, teríamos a contemplação da diretriz do art. 8º, VI, da Constituição, de obrigatoriedade da participação do sindicato na alteração das condições de trabalho da categoria.
Quanto à legalidade, poderíamos entender que, em razão das prerrogativas de iniciativa e legiferação da Administração Pública, bem como seu método, a “força de lei entre as partes” se tornaria algo mais do que força de expressão, mas verdadeiro status legal da norma coletiva, estado esse que poderia ser utilizado de fato em quaisquer medidas. De outro lado, seria possível entender o oposto, que, não se tratando verdadeiramente de lei, a limitação da Administração Pública em seus atos legislativos e limites de competência não seriam, de fato, aplicáveis, eis que aqui não se estaria a fazer lei em senso estrito, mas sim um contrato.
Esta segunda posição parece compatível com o ordenamento jurídico brasileiro, eis que na lei há caráter abstrato e impessoal, sendo vedado legislar em caráter específico. Por outro lado, há várias formas de a Administração Pública firmar contratos.
O princípio da reserva legal, nessa linha, não parece incompatibilizar a negociação coletiva para servidores públicos; apenas se constitui em limitação para que quaisquer temas que exijam forma legal específica sejam ratificados com a requerida formalidade legal pelo órgão competente(4). As demais cláusulas, no entanto, poderiam vigorar de imediato.
É interessante que, dentre os vários países que admitem negociação coletiva no serviço público, há aqueles que tiveram que lidar com os mesmos aparentes óbices à negociação presentes no Brasil(5).
A Argentina, por exemplo, lida com a limitação orçamentária com a inclusão do negociado para o exercício financeiro seguinte à negociação e, quanto à legalidade, restringe a negociação para temas de estrutura do Estado e formas de admissão e progressão de carreira. Para solução de conflitos, há uma comissão paritária permanente, a CoPAR(6).
A Itália admite centralizar a negociação em uma agência, a ARAN – Agenzia per la Rappresentanza Negoziale delle Pubbliche Amministrazioni(7). Lá também há o requisito de previsão orçamentária e reserva legal, o que se soluciona através da existência de data base que permita uma negociação tempestiva para que se incluam os efeitos financeiros no orçamento e se dê encaminhamento para conversão da negociação em lei pelos órgãos competentes.
Por último, a Espanha tem histórico similar ao brasileiro, uma vez que seu Tribunal Constitucional, em 1982, também compreendeu que a Constituição não teria admitido negociação coletiva para o serviço público, tendo havido posterior ratificação das Convenções 151 e 154 da OIT(8). Em seguida, a legislação interna foi adaptada de modo a admitir a negociação coletiva, possibilitando tratar de remuneração, critérios de admissão e progressão, condições de trabalho, dentre outros temas. A formalização do acordo, quando o tema é de competência restrita, fica condicionada à aprovação do órgão competente para o respectivo tema(9).
Notável, dessa maneira, que a implementação da negociação coletiva no âmbito do serviço público é questão que se impõe ao Estado Brasileiro, tendo em vista que é necessária a sua regulamentação com a ratificação da Convenção nº 151 da OIT, possibilitando aos servidores públicos o acesso ao direito à negociação, inclusive como forma de solução pacífica dos conflitos, evitando-se a realização de inúmeras greves – afinal, atualmente, a greve é o único instrumento que o servidor tem como forma de se fazer ouvir perante o desinteresse e o descaso do Poder Público.
E, justamente por todas as breves considerações feitas, espera-se que o Congresso Nacional derrube o veto presidencial ao PL nº 3831/2015, de modo a fazer valer a voz das ruas, que buscam nada mais que uma relação compromissada não apenas com a primazia do interesse público, a partir de uma melhor prestação do serviço público, mas, sobretudo, a defesa por um Estado que, para além de ser de Direito, seja Democrático.
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1 DELGADO, Maurício Godinho. Curso de direito do trabalho. 3. ed. São Paulo: Ltr, 2004, pp. 1.043-1.044.
2 ROMITA, Arion Sayão. Direitos fundamentais nas relações de trabalho. 3 ed. São Paulo: LTr, 2009.
3 V.g. alterações do decreto 84.134/79, que regulamenta as funções estabelecidas no âmbito da categoria pela Lei 6.615/78, com participação da Federação Interestadual dos Trabalhadores em Empresas de Rádio, Televisão Aberta ou por Assinatura – Fitert.
4 SERAU Junior, Marco Aurélio. Negociação coletiva no serviço público: observações sobre a Convenção nº 151 da OIT. Belo Horizonte: RFMD, Set./Nov. 2016, v. 19, n. 38, p. 53-69. Disponível em <http://periodicos.pucminas.br/index.php/Direito/article/view/P.2318-7999.2016v19n38p53.>. Acesso em 18 jan. 2018.
5 LACERDA, Larissa Gabriella Lins Victor. A negociação coletiva no serviço público brasileiro após a incorporação da Convenção 151 da OIT. Disponível em <http://www.conteudojuridico.com.br/artigo,a-negociacao-coletiva-no-servico-publico-brasileiro-apos-a-incorporacao-da-convencao-151-da-oit,55629.html>. Acesso em 18 jan. 2018.
6 UPCN. Desenvolvido por Union del Personal Civil de la Nacion. Disponível em <http://www.upcndigital.org/consejo-directivo/paritarias/copar>. Acesso em 18 jan. 2018.
7 ARAN. Desenvolvido por Agenzia per la Rappresentanza Negoziale delle Pubbliche Amministrazioni. <https://www.aranagenzia.it/> Acesso em 18 jan. 2018.
8 LACERDA, Larissa Gabriella Lins Victor, op. cit.
9 DEMARI, Melissa. A possibilidade da negociação coletiva entre servidores públicos e o Estado. Jus Navigandi, Teresina, ano 14, n. 2046, 6 fev.2009. Disponível em: <http://jus.com.br/artigos/12289> e em <https://jus.com.br/artigos/12289/a-possibilidade-da-negociacao-coletiva-entre-servidores-publicos-e-o-estado>. Acesso em: 18 jan 2018.
Diego Britto – advogado e coordenador do Núcleo Trabalhista do escritório Cezar Britto & Advogados Associados, graduado em Direito pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB, Pós-graduado em Direito do Trabalho e Previdenciário pelo Centro Universitário de Brasília – UniCEUB e em Processo Civil pela ENA/UNISC, e Pós-graduando em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB
Yasmim Yogo – advogada do Núcleo Administrativo e Constitucional do escritório Cezar Britto & Advogados Associados, graduada em Direito pela Universidade Federal de Sergipe – UFS, e Pós-graduanda em Direito Sindical no Instituto de Educação Superior de Brasília – IESB
Artigo originalmente publicado em: https://www.jota.info/
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