Com apenas três meses de vigência já é possível confirmar que a Lei 13.467/2017, aprovada a pretexto de segurança jurídica, a afastou completamente do mundo do trabalho. Há instabilidade do mercado com demissões em massa extremas, decisões conflitantes que parecem interpretar duas legislações distintas, oito questionamentos acerca da cons
O cenário caótico era previsível — e foi previsto. A lei que deformou a CLT faz habitar no mesmo corpo legal um segundo espírito totalmente incompatível com o original, sem, no entanto, o apagar, como uma verdadeira possessão digna de exorcismo. A resultante lei padece de um inegável transtorno dissociativo de personalidade, e não há mesmo como ser utilizada ou interpretada com segurança pela sociedade ou pelo Judiciário.
A clara incompatibilidade da lei consigo mesma (e com o resto do ordenamento jurídico, frisa-se) não parece, ainda, tê-la levado ao insucesso — ao menos sob a ótica dos seus patrocinadores. É que, ao que se percebe (e já se percebia), segurança jurídica não era a intenção, mas uma versão corrompida dela, algo como uma “segurança não judiciária”. Tal intenção não se vê imediatamente nas flexibilizações, mas nas alterações das normas de ação e acesso ao Judiciário, todas elas modificadas para dissuadir o trabalhador a buscar seus direitos na Justiça ou mesmo impedir tal busca.
À parte da (in)constitucionalidade destas alterações (vide ADI 5.766), dentre elas destaca-se a necessidade de determinação dos pedidos inserta nos parágrafos do art. 840 da CLT, interpretada como inauguração da liquidação prévia dos créditos trabalhistas. A regra não mais orientaria a liquidação da decisão transitada em julgado, mas que já na petição inicial as verbas requeridas deveriam ser indicadas. Importa-se, assim, para o processo do trabalho, o debate acerca de “determinação” indicar ou não liquidação, em mais uma indefinição inaugurada pela nova norma.
A despeito da relação entre os conceitos, o dispositivo não parece inviabilizar pleitos não liquidados, se não pela falta de indicação expressa para tanto, ao menos em relação a pedidos não determináveis, conforme §1º do art. 324 do CPC. Isso, ou o direito de ação e acesso ao Judiciário seria impossibilitado, eis que comumente as reclamações pleiteiam direitos cuja liquid
Mesmo assim, ao se interpretar esta alteração com as demais relacionadas ao acesso, é fácil concluir se tratar de uma intenção de óbice ao constitucional acesso à jurisdição – dificultar o ajuizamento da ação e facilitar o cálculo da eventual sucumbência do trabalhador.
Escrevendo em outras palavras: a liquidação antecipada da condenação teve como finalidade a ideia de fazer do medo de pagar a sucumbência o argumento principal para evitar a busca do ressarcimento judicial dos direitos não pagos.
Em razão desta perversa lógica, percebe-se que a alteração legislativa não se deu em um evento qualquer do processo, mas em um particularmente especial, que eleva seu impacto a dimensões aparentemente não previstas pela mão invisível que legiferara: a petição inicial.
A petição inicial veicula e aprisiona a demanda, determina o escopo do processo, com a delimitação da causa de pedir e dos pedidos. Assim e que tudo o que nela está contido, passará a compor a lide e estará à mercê da jurisdição (art. 489, II e III, do CPC).
A consequência de se liquidar pedidos na inicial de uma reclamatória trabalhista, assim, é tornar a liquidação objeto da fase de conhecimento. Não apenas o resultado será mensurado na decisão, mas também os critérios de cálculo lançados na inicial, em uma verdadeira antecipação da usual liquidação de sentença.
Esta nova conformação significa, em consequência, que o cálculo proposto na inicial deverá ser prontamente impugnado pela contestação, sob pena de se consolidar como o critério de cálculo a ser utilizado no caso. É o efeito de controvérsia que se extrai do CPC, nos art. 293, 341, 342, 336 e 374, III, com especial destaque para o art. 341, pelo dever de impugnação específica e da consequência de não se controverter a proposição de cálculo. O raciocínio é condizente com o próprio art. 879, §2º, da CLT, do qual também se extrai o efeito da preclusão sobre uma conta líquida não impugnada, bem como sobre sua fórmula de cálculo.
É de se frisar, ainda, a possibilidade de especial distribuição do ônus da liquidação no caso de pleitos fundados em documentação, perícia e dados de responsabilidade da própria empresa, ao que a consequência da não fundamentação da contestação em cálculos precisos poderia mesmo redundar na presunção de veracidade dos resultados e fórmulas apresentados na inicial, em raciocínio que se extrai por disposição legal, por lógica e por razoabilidade na distribuição enunciada no art. 373, II e §1º, do CPC.
Outra consequência da antecipação da lide e jurisdição do cálculo para a fase cognitiva é a formação da coisa julgada. Liquidados os valores e fórmulas de cálculo e especificamente impugnados, necessitam ser expressamente abordados na decisão, sob pena de se perder a liquidez e se tornar inútil a exigência de liquidação.
Assim, uma vez que o cálculo já terá passado pelo crivo do Judiciário, não mais poderá ter seus critérios alterados, sob pena de violação da coisa julgada — art. 5º, XXXVI, da Constituição Federal – e preclusão da matéria apta a ser contestada — art. 342 do CPC. Restará, então, com o fim da fase de conhecimento, a mera atualização e o pagamento.
Nestes termos, muito embora tradicionalmente critérios de cálculo e valores tenham sido matéria de execução, não há mais, em uma ação liquidada na fase de conhecimento, como veicular qualquer insurgência pós trânsito em julgado.
O obstáculo intentado apenas ao trabalhador se alastra, compartilhado com a empresa litigante, e compele também o Judiciário à sua resolução precoce; prende a todos, afinal, a dificultosa exigência. Ao trabalhador que logra transpassar o “calvário” posto na inicial, assim, poderá lhe render, ao contrário de todas as expectativas,alguma vantagem processual. Ao que parece, a voracidade da normativa careceu, aqui, da inteligência de um olhar mais aprofundado sobre as consequências processuais da norma, o que pode ter sido bom – ou, mais apropriadamente,menos mal.
Pode-se concluir, assim, que a normativa atual não necessariamente implica na obrigatoriedade de liquidação na inicial, mas, ocorrendo esta, o processo deverá correr conforme a lógica da litiscontestatio, da impugnação específica, da preclusão e da coisa julgada, trazendo o dever de manutenção da liquidação para todos os sujeitos do processo, não apenas à parte autora, e antecipando toda a discussão para a fase cognitiva de forma exclusiva.
Carecemos nós advogados e também juízes de refletir com muita atenção sobre este tema, sob pena de num futuro não muito distante voltarmos à época em que o trabalhador sequer conhecia direitos, pois de fato só enxergava seus deveres pautados numa relação escravista e extremamente desumana. Que a “inicial” não seja um fim ou o fim do processo de reparação a direitos negados ao trabalhador!
Artigo originalmente publicado em: https://www.conjur.com.br/
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